13 de outubro de 2010

Dormiu mulher e acordou tela


Brigamos por anos, eu refletia ela divergia, eu ameaçava ela corria, eu pedia ela fugia, ela dizia que amava e eu apenas sorria. Talvez fossemos amigos, brincávamos de irmãos, horas lendo, horas debatendo, uns dias de sim, outros de não.

No último dia, saímos da Universidade para o cinema, depois para o chorinho na lagoa da conceição. Cinco doses de tequila, oito ou nove passadelas de mão, nenhum beijo e um punhado quase cheio de sorrisos. Duas vontades de resistir, seis negativas e um retorno indeciso na hora de dizer, chega!

Lembro-me que antes de dormir uma lágrima umedecia seu rosto enquanto meus dentes cravavam talvez a última mordida de nossas vidas. Após noite de delírios e estórias de vida adormecemos no escuro e bêbados, vestidos e nus, sem uma gota de ressentimento para lamentar.

Acordei as sete. Garganta em risco, desejo saciado e acompanhado por um corpo dourado como aquele sol que acabara de desrespeitar as venezianas.

Nua, de bruços, quieta, macia e silenciosa. Observei por duas horas, cada curva, cada pêlo, cada contrapelo. Um poema que nunca consegui escrever, uma foto que nunca consegui tirar, uma imagem que não me deixa esquecer.

Ela virou seu rosto de lado, mas deixou o corpo intacto, sabia que alimentava uma fantasia, dormiu mulher e acordou tela, sorriu serena e antes mesmo de um bom dia, foi imperativa:

“Me escreve um poema”.

Deslizei o pincel sobre aquele corpo por vinte minutos, derramei palavras, tatuei frases, massageei versos e germinei o nascimento de um dos meus melhores poemas.

Ela dormiu marcada. Eu li, li e reli, declamei, sussurrando quase que gemi. Ela observava de olhos fechados e eu tremia, eram quase dez e o avião saía ao meio dia.

Uma amiga, uma esposa, uma parceira, uma amante que passamos anos para ficar marcados num único dia. Certo estava Charles Baudelaire: Há mulheres, que o desejo é de possuí-las e desfrutá-las, outras não, outras dão vontade de morrer lentamente sob seu olhar.

Texto e fotografia: César Félix

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